24/10/2018

Era uma vez um tigre...

Estávamos sentados no chão, durante uma roda de conversa com alunos da 6ª e 7ª classe, num colégio privado no bairro do Triunfo, em Maputo. Quando a sessão já estava para terminar, um menino de 11 ou 12 anos esgueirou-se entre os colegas para ficar mais próximo de mim. A conversa estava animada e o círculo era apertado; eu nem tinha dado conta da movimentação. Até que reparei num dedo erguido ali mesmo diante de mim.
– Como fazes para não ter vergonha? – perguntou ele em surdina.
Pedi-lhe que explicasse melhor:
Vergonha de quê, meu lindo? 
– Vergonha de escrever histórias que algumas pessoas podem não gostar. Ou de dar entrevistas...
Pumba! Murro no estômago. Já devia saber: as melhores perguntas – as mais incómodas, as mais divertidas, insólitas ou profundas – vêm sempre das crianças.
Inspirei fundo e hesitei por momentos antes de responder em tom confessional.
Sabes uma coisa? A verdade é que eu tenho vergonha. Apenas tento disfarçar...
Pareceu-me ver um sorriso tímido esboçar-se no rosto dele. 
Quando a roda dispersou, no momento das despedidas, ele aproximou-se com mais uma inquietação.
Podes escrever uma história com o meu nome?
Que bonito! Escreve aqui o teu nome para eu não me esquecer – e estendi-lhe a palma da mão.
Enquanto ele escrevia, fui acrescentando:
Sabes, gostei muito da tua pergunta. É impossível escrever histórias que todos vão gostar. Mas isso não significa que devemos parar. Qual é a pessoa mais importante que tem de gostar?
Sou eu? – respondeu com pouca certeza.
Exactamente! – confirmei cheia de entusiasmo – E quem é que, se calhar, também vai gostar e ficar muito orgulhoso?
Aí respondeu sem qualquer sombra de dúvida.
Os meus pais!
Boa! – concordei com ele.
Então acrescentei:
Olha, tive uma ideia! Porque é que não escreves tu uma história com o teu nome?
É que não estou muito habituado ao português, dantes estava no ensino inglês.
Então porque não escreves em inglês? 
Os olhos dele brilharam como se tivesse descoberto a pólvora.
Posso escrever em inglês?
Claro que sim! As histórias escrevem-se em qualquer língua. A primeira coisa que tens de fazer é contá-la. Depois é só passar para o papel. Como é que se começa uma história em inglês?
Once upon a time...
Exactamente! Once upon a time... – repeti eu, olhando para as letras desenhadas na palma da minha mão – Once upon a time, there was a tiger named Thando...


Era uma vez um tigre chamado Thando...

O rosto abriu-se num largo sorriso e Thando, o menino tímido com nome de tigre, conquistou a sua própria vergonha para me fazer um pedido genuíno.
Posso ter o teu número?
Desatei-me a rir e pedi-lhe a caneta de volta. Ele estendeu a palma da mão e foi a minha vez de escrever. 

Cristiana Pereira
Jornalista/Escritora

Ilustração: pixabay.com

19/06/2018

Com cinco anos apenas

A menina está sozinha em cima do palco. Não tem mais de metro e meio, terá seguramente menos. Uniforme escolar irrepreensível: saia azulada, camisa engomada, gravata composta. O cabelo alegremente penteado em três grandes puxinhos. É pequena em tamanho, mas a sua presença enche o auditório da Universidade Zambeze, na cidade da Beira. Com confiança, projecta a voz para declamar um poema sobre a criança africana. Naquele instante, ela é mais do que uma declamadora; ela É o poema. Liberdade, esperança, competência.
Segue-se uma colega. Mais alta e fina. Com voz igualmente segura, a sua intervenção invade a sala como uma rajada de vento: “com cinco anos”. E insiste: “com cinco anos”. Não é uma idade, é uma sentença. Com cinco anos, a avó não sabia ler. A mãe não sabia ler. O pai não sabia ler. Com cinco anos, ela já sabe ler. Não é uma idade, é uma esperança. O inverter de um passado condenado à escuridão. A promessa de um futuro cheio de luz, de livros, de sonhos.
Outras se seguem. E nos surpreendem e nos encantam.


Vencedoras do concurso de declamação (Beira, 17/06/2018)
Estamos na segunda edição do Festival do Livro Infantil da associação Kulemba (FLIK 2018), a decorrer entre 15 e 17 de Junho na capital de Sofala. A liderar a iniciativa está Dany Wambire, escritor beirense, autor de vários livros, fundador da Kulemba e da editora Fundza. Provavelmente, ele contestaria a escolha do verbo “liderar”. É assumidamente um homem de equipa, um defensor de parcerias. Durante os dias do festival, a sua presença dilui-se nos bastidores. Troca o palco pelas trincheiras de um certame onde acorrem centenas de crianças e dezenas de convidados. Responde a telefonemas, recebe visitas, resolve crises, desaparece para regressar com grandes panelas de comida. Mal pára para respirar, mas nunca deixa de sorrir.
O sucesso do Festival é fruto do trabalho realizado ao longo do ano pela Kulemba. A sua missão é promover a leitura e a escrita entre crianças e jovens da província. Os resultados estão à vista: nas meninas que declamam com brio os seus poemas; nas duas colectâneas de contos tradicionais recolhidos por crianças que já publicaram; e nas inúmeras questões colocadas com pertinência e simplicidade aos convidados do evento.
“O que é para ti a formiga?”, pergunta-me Lucileide.
A minha participação enquadra-se no trabalho que tenho realizado com a Formiga Juju, um movimento cívico de promoção da leitura e expressão criativa, que surgiu em 2012 com a publicação do conto “A Formiga Juju na Cidade das Papaias”. Seguiu-se, em 2013, “A Formiga Juju e o Sapo Karibu” e, no ano seguinte, “A Formiga Juju e o Professor Moskito”. Já este ano, foi publicado o quarto conto (“A Formiga Juju e a Borboleta Mwarusi”) que, de forma leve e metafórica, retrata o drama dos casamentos prematuros e das uniões forçadas.

A caminho do Festival com Filipa Pais de Sousa (Beira, 16/07/2018)
Viajo de Maputo para a Beira desafiada por Venâncio Calisto, talento emergente do teatro moçambicano, que tomou a iniciativa de encenar o conto da Mwarusi. A apresentação da sua companhia de actores, (In)Versos, é brilhante. O público rende-se à actuação de Eunice Mandlate, Sufaida Moyane e Samuel Nhamatate. Crianças e adultos alternam entre risos, canções e respiração contida. O suspense instala-se. A solução aparece. Os aplausos prolongam-se. 
Sentada ao meu lado na boca do palco, Lucileide aguarda a minha resposta. Como uma presa encurralada, tento fugir à pergunta devolvendo-a à origem. Apesar de tão simples, nunca antes parara para reflectir sobre a questão. Mas ela nem hesita em responder: “Para mim a formiga é uma amiga e uma história”.

"A formiga é uma amiga e uma história" (Beira, 17/07/2018)
E assim, em apenas uma frase, ela capta toda a essência de uma personagem que sonha, de forma lúdica, recordar aos mais novos os valores que sempre nos guiaram: solidariedade, tolerância, responsabilidade, união e criatividade. 
Com o FLIK 2018, a Kulemba ensinou-nos que nem tudo acontece em Maputo. Que com pouco se faz muito. E que vale a pena investir nas crianças. Para que amanhã sejam elas a investir na geração seguinte e um dia possamos ouvir: “Com cinco anos apenas, a minha mãe já sabia ler”.

Cristiana Pereira
Jornalista / Escritora