31/08/2013

A mudança começa aqui

Durante uma campanha recente de literacia em Moçambique, distribuíram-se t-shirts que diziam algo como: "uma em cada duas pessoas não consegue ler esta frase". Com o efeito de um murro no estômago, aquelas dez palavras alertavam para um cenário desolador de exclusão social, que - sabemos - afecta mais mulheres do que homens. 

É verdade que, em Moçambique, praticamente metade da população (total: 24 milhões de habitantes) está excluída do universo da leitura e da escrita. No entanto, o sentido da frase também pode ser invertido:

... uma em cada duas pessoas sabe ler!

Isso faz-nos acreditar que é possível contagiar cada vez mais pessoas com o bichinho da leitura.  Sonhamos, um dia, ver todas as pessoas à nossa volta lendo, discutindo e partilhando livros que fazem crescer, sonhar e viajar para lá da realidade do dia-a-dia.

A Formiga Juju nasceu como uma simples história, mas depressa evoluiu para um movimento cívico de promoção da leitura e expressão criativa. De forma espontânea e imprevista, assumimos a missão de levar livros onde eles não existem, produzindo materiais socialmente responsáveis e culturalmente relevantes.

Foto: Ouri Pota Pacamutondo

Acreditamos no poder transformativo de um livro nas mãos de uma criança. E queremos que os leitores de hoje sejam os autores de amanhã. 

Por isso dizemos, ao virar de cada página: a mudança começa aqui.

20/08/2013

A história da Pupa


Durante o processo de criação do primeiro conto da Formiga Juju, o meu filho questionou-me:
– Mãe, como se chama a árvore?
A pergunta pareceu-me bastante óbvia e respondi de forma imediata:
– A árvore? É uma papaieira, filho.
– Não, Mãe! O nome!!
– Aaaaaah!! O nome...
Ele tinha razão, já tínhamos baptizado a Juju, mas faltava um nome para a sua amiga papaieira. Propus então que fosse ele a pensar no nome. Pensou, pensou, até que sugeriu:
– Já sei, Mãe! Podia ser Pupa...

Do livro: "A Formiga Juju na Cidade das Papaias"

Gostei logo do nome. Ele não tinha como adivinhar, mas Pupa era o nome da minha boneca preferida quando era pequena. Tinha vindo da Holanda, como recordação de uma viagem dos meus pais na zona dos Países Baixos. Tinha cara de plástico e corpo de pano, um vestido azul e pálpebras de abrir e fechar. Mas do que mais me lembro é do cheiro... inexplicavelmente, aquele rosto sintético cheirava mesmo a bebé!
Uns meses mais tarde, quando iniciámos as apresentações do conto da Formiga Juju, em várias escolas e centros de acolhimento, no sul de Moçambique, levávamos sempre uma papaieira para plantar. Dizíamos às crianças:
– Agora a Juju tem que ir embora, mas ela vai deixar cá a Pupa para vocês tomarem conta.


Cerimónia de plantação da Pupa
Numa dessas ocasiões, juntámo-nos à DSF-Dores Sem Fronteiras para fazer uma sessão de partilha no Centro de Recursos para a Educação Inclusiva (CREI) na Macia, uma vila na província de Gaza mais conhecida pelo cruzamento que dá acesso à praia do Bilene. Em Moçambique, existem três CREI, um para cada região do país (Norte, Centro e Sul), que são geridos sob a tutela do Ministério da Educação.

O CREI da Macia acolhe hoje cerca de 100 crianças com diferentes tipos de deficiência (visual, auditiva ou psicomotora). Antes da nossa deslocação, quisemos preparar devidamente o encontro e, para isso, reunimos o núcleo duro da Formiga Juju: eu (Cristiana, a autora), o Walter Zand (ilustrador), a Mia Temporário (designer), a Suzana Duarte (assessora pedagógica), a Carla Ladeira (terapeuta e especialista em educação inclusiva) e a Sheila (voluntária/contadora de histórias)
.
O principal tema de discussão era: como é que podemos adaptar a narração do conto para conseguirmos “tocar” cada uma das crianças em particular? Percebemos, então, que a limitação estava do nosso lado – e não do lado das crianças – se não fôssemos capazes de chegar a todas. Era preciso reinventar o conto, proporcionar ao nosso público uma experiência que apelasse a todos os sentidos.
Na hora de partir para a Macia, ainda fomos brindados com uma surpresa: a Maria João (voluntária/costureira) tinha feito um fato encantador para animar a narração do conto, com direito a cauda de formiga, colete almofadado em capulana, “capacete” com antenas e duas trancinhas... o fato acompanha-nos até hoje!
A experiência no CREI foi, ao mesmo tempo, sensorial, imaginativa e emocional. Obrigou-nos a sair da nossa zona de conforto, permitindo alcançar dimensões que de outra forma desconheceríamos. Com as crianças e os educadores do CREI, aprendemos a falar com as mãos, a ouvir com os olhos e a ver com o coração. Tocámos e fomos tocados.


Suzana Duarte com meninos do CREI

Depois de sermos acolhidos com um cântico sobre educação inclusiva, começámos o encontro com uma sessão de leitura animada pela Sheila, que deu corpo e alma à personagem da Juju, circulando entre as crianças, consolando a Pupa quando ela ficou sem papaias e desfalecendo no meio do chão por efeito da poluição. Com um borrifador, a Juju trouxe a chuva para dentro da sala do CREI; soltaram-se gargalhadas e guinchos de alegria quando os pingos de água molharam todo o público. Um queimador de aromaterapia serviu para acrescentar a dimensão olfactiva à sessão.

As crianças renderam-se à formiga Sheila 

Enquanto a Sheila animava o conto, a história foi sendo projectada na parede em língua de sinais, através de um vídeo preparado previamente pelo Professor Nehemia. Entretanto, outra história ia decorrendo em paralelo. Organizadas em forma de flor à volta da sala, as crianças iam comunicando entre elas: riam-se, tocavam-se, olhavam-se, puxavam-se... usando a linguagem universal dos afectos à qual ninguém fica indiferente. Na sessão de desenho que se seguiu, as crianças esparramaram-se no chão e deixaram a criatividade à solta. Partilharam lápis de cera para encher de cor os desenhos da Juju e deram a mão a quem não conseguia ver, apenas sentir, o azul do céu e o laranja da papaia.

Meninos do CREI colorindo desenhos da Juju

Depois, entregámos 30 livros ao cuidado do Director do CREI, para o próprio Centro, para os Centros de Reabilitação Infantil de Chibuto e Chokwe, e ainda 26 escolas inclusivas da província de Gaza. Quisemos também reconhecer o trabalho dos cinco auxiliares que, de dia e de noite, oferecem muito mais do que livros e materiais às crianças – dão carinho e ternura. Cada um recebeu um exemplar do livro.
Entre os auxiliares, estava uma senhora visivelmente grávida. Embora a avalanche de emoções que vivemos nesse dia não me permitam recordar todos os detalhes, dizem que, na altura, alguém terá proclamado:
– Vai ser menina e vão chamar-lhe Pupa!
Antes das despedidas, explicámos às crianças que a Formiga Juju tinha que regressar à Cidade das Papaias. De imediato se ouviu: 
– Fica, Juju! Fica, Juju!
Foi então que desvendámos a Pupa verdadeira que tínhamos trazido connosco para plantar com as crianças, para que cada uma delas – na qualidade de “formiga” – cuidasse da árvore como a Juju faria. Saímos então para o exterior de modo a lançar a papaieira à terra. Nessa altura, o céu abriu-se e caiu chuva de verdade. Dizem que era abençoada!
Na ronda de partilha que fizemos no final entre a equipa da Juju e os formadores do CREI, o Director do Centro, Francisco Zevute, exprimiu com sinceridade:
– Que a Pupa não tenha sido apenas plantada na terra, mas na memória de cada um de nós.
Dois meses depois, nasceu uma menina. E chamaram-lhe Pupa. 

Uma bebé chamada Pupa


20/07/2013

Love's work

Chadi é estudante de electrotécnica e vive em Xai Xai, capital da província de Gaza (Moçambique).

Um dia, ia a caminhar na rua, quando viu passar uma criança da 7a. classe com um exemplar do livro "A Formiga Juju na Cidade das Papaias".



Um conto de Cristiana Pereira, ilustrado por Walter Zand
Manifestando sintomas próprios de leitor compulsivo, negociou com ela e adquiriu o livro em troca de "algumas moedas".

Gostou tanto da história que decidiu escrever-nos para o endereço que aparece na orelha - formigajuju@gmail.com - a pedir mais histórias da Juju.


Numa troca de correspondência, acrescentou então uma nota que muito nos tocou:


"eu sou qem agradece imensamente pela criatividade talento tecnica e sobre td love's work'' 

Hoje, logo pela manhã cedo, falámos pela primeira vez ao telefone e imediatamente nos reconhecemos como formigas. As formigas têm uma chama na voz - a chama da espontaneidade - que não precisam de esconder. Falam directamente do coração, sem medo do disparate ou da reacção. 

É bom saber que temos formigas espalhadas pelos quatro cantos do mundo: Maputo, Lisboa, Luanda, Macau, Dili, Nampula, Lichinga, São Paulo, Songo, Ibo, Lancaster e agora... Xai Xai!


Chadi assina assim os seus emails: "I'm a dreamer"... Nós também! ;)