Durante o processo de criação do
primeiro conto da Formiga Juju, o meu
filho questionou-me:
– Mãe, como se chama a árvore?
A pergunta pareceu-me bastante
óbvia e respondi de forma imediata:
– A árvore? É uma papaieira, filho.
– Não, Mãe! O nome!!
– Aaaaaah!! O nome...
Ele tinha razão, já tínhamos
baptizado a Juju, mas faltava um nome para a sua amiga papaieira. Propus então
que fosse ele a pensar no nome. Pensou, pensou, até que sugeriu:
– Já sei, Mãe! Podia ser Pupa...
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Do livro: "A Formiga Juju na Cidade das Papaias" |
Gostei logo do nome. Ele não
tinha como adivinhar, mas Pupa era o nome da minha boneca preferida quando era
pequena. Tinha vindo da Holanda, como recordação de uma viagem dos meus pais na
zona dos Países Baixos. Tinha cara de plástico e corpo de pano, um vestido azul
e pálpebras de abrir e fechar. Mas do que mais me lembro é do cheiro... inexplicavelmente, aquele
rosto sintético cheirava mesmo a bebé!
Uns meses mais tarde, quando
iniciámos as apresentações do conto da Formiga Juju, em várias escolas e
centros de acolhimento, no sul de Moçambique, levávamos sempre uma papaieira
para plantar. Dizíamos às crianças:
– Agora a Juju tem que ir embora, mas ela vai deixar cá a Pupa para vocês
tomarem conta.
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Cerimónia de plantação da Pupa |
Numa dessas ocasiões,
juntámo-nos à DSF-Dores Sem Fronteiras para fazer uma sessão de partilha no
Centro de Recursos para a Educação Inclusiva (CREI) na Macia, uma vila na
província de Gaza mais conhecida pelo cruzamento que dá acesso à praia do
Bilene. Em Moçambique, existem três CREI, um para cada região do país (Norte,
Centro e Sul), que são geridos sob a tutela do Ministério da Educação.
O CREI da Macia acolhe hoje
cerca de 100 crianças com diferentes tipos de deficiência (visual, auditiva ou
psicomotora). Antes da nossa deslocação, quisemos preparar devidamente o
encontro e, para isso, reunimos o núcleo duro da Formiga Juju: eu (Cristiana, a
autora), o Walter Zand (ilustrador), a Mia Temporário (designer), a Suzana
Duarte (assessora pedagógica), a Carla Ladeira (terapeuta e especialista em
educação inclusiva) e a Sheila (voluntária/contadora de histórias)
.
O principal tema de discussão
era: como é que podemos adaptar a narração do conto para conseguirmos “tocar”
cada uma das crianças em particular? Percebemos, então, que a limitação estava
do nosso lado – e não do lado das crianças – se não fôssemos capazes de chegar
a todas. Era preciso reinventar o conto, proporcionar ao nosso público uma experiência que apelasse a todos os sentidos.
Na hora de partir para a Macia,
ainda fomos brindados com uma surpresa: a Maria João (voluntária/costureira)
tinha feito um fato encantador para animar a narração do conto, com direito a
cauda de formiga, colete almofadado em capulana, “capacete” com antenas e duas
trancinhas... o fato acompanha-nos até hoje!
A experiência no CREI foi, ao
mesmo tempo, sensorial, imaginativa e emocional. Obrigou-nos a sair da nossa
zona de conforto, permitindo alcançar dimensões que de outra forma
desconheceríamos. Com as crianças e os educadores do CREI, aprendemos a falar
com as mãos, a ouvir com os olhos e a ver com o coração. Tocámos e fomos
tocados.
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Suzana Duarte com meninos do CREI |
Depois de sermos acolhidos com
um cântico sobre educação inclusiva, começámos o encontro com uma sessão de
leitura animada pela Sheila, que deu corpo e alma à personagem da Juju,
circulando entre as crianças, consolando a Pupa quando ela ficou sem papaias e
desfalecendo no meio do chão por efeito da poluição. Com um borrifador, a Juju
trouxe a chuva para dentro da sala do CREI; soltaram-se gargalhadas e guinchos
de alegria quando os pingos de água molharam todo o público. Um queimador de
aromaterapia serviu para acrescentar a dimensão olfactiva à sessão.
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As crianças renderam-se à formiga Sheila |
Enquanto a Sheila animava o
conto, a história foi sendo projectada na parede em língua de sinais, através
de um vídeo preparado previamente pelo Professor Nehemia. Entretanto, outra
história ia decorrendo em paralelo. Organizadas em forma de flor à volta da
sala, as crianças iam comunicando entre elas: riam-se, tocavam-se, olhavam-se,
puxavam-se... usando a linguagem universal dos afectos à qual ninguém fica
indiferente. Na sessão de desenho que se seguiu, as crianças esparramaram-se no
chão e deixaram a criatividade à solta. Partilharam lápis de cera para encher
de cor os desenhos da Juju e deram a mão a quem não conseguia ver, apenas
sentir, o azul do céu e o laranja da papaia.
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Meninos do CREI colorindo desenhos da Juju |
Depois, entregámos 30 livros ao
cuidado do Director do CREI, para o próprio Centro, para os Centros de
Reabilitação Infantil de Chibuto e Chokwe, e ainda 26 escolas inclusivas da
província de Gaza. Quisemos também reconhecer o trabalho dos cinco auxiliares
que, de dia e de noite, oferecem muito mais do que livros e materiais às
crianças – dão carinho e ternura. Cada um recebeu um exemplar do livro.
Entre os auxiliares, estava uma
senhora visivelmente grávida. Embora a avalanche de emoções que vivemos nesse dia
não me permitam recordar todos os detalhes, dizem que, na altura, alguém terá
proclamado:
– Vai ser menina e vão chamar-lhe Pupa!
Antes
das despedidas, explicámos às crianças que a Formiga Juju tinha que regressar à
Cidade das Papaias. De imediato se ouviu:
– Fica,
Juju! Fica, Juju!
Foi então que desvendámos a Pupa verdadeira que
tínhamos trazido connosco para plantar com as crianças, para que cada uma delas –
na qualidade de “formiga” – cuidasse da árvore como a Juju faria. Saímos então
para o exterior de modo a lançar a papaieira à terra. Nessa altura, o céu
abriu-se e caiu chuva de verdade. Dizem que era abençoada!
Na
ronda de partilha que fizemos no final entre a equipa da Juju e os formadores do CREI, o Director do Centro, Francisco Zevute,
exprimiu com sinceridade:
– Que a Pupa não tenha sido apenas plantada na terra, mas na memória de
cada um de nós.
Dois meses depois, nasceu uma
menina. E chamaram-lhe Pupa.
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Uma bebé chamada Pupa |